"SE A CURIOSIDADE AQUI TE CONDUZIU, BENDITA CURIOSIDADE, QUE TE FARÁ UM DIA, UM OBREIRO DO SENHOR"
Durante o estado Novo, no final dos anos 30, sob a ditadura de Getúlio Vargas, os Terreiros de Umbanda, em São Paulo, viveram sua fase mais difícil. Para que pudessem trabalhar, eram obrigados a se registrar nas delegacias e ao pagamento, do que chamavam, à época, de “Taxas de Proteção”, que eram verdadeiras extorsões. Os que não se registravam eram obrigados a atuar na clandestinidade, correndo o risco de, a qualquer momento, serem surpreendidos pelas “batidas policiais”. Nessa época, não se ouvia falar em Umbanda ou Candomblé; o que se lia em jornais eram termos como feitiçaria, macumba e baixo espiritismo. Não existiam Centros de Umbanda em São Paulo.
Nesse cenário de repressão, já entre as décadas de 40 e 50, surge alguém que, na época, foi considerado “o defensor da Umbanda”: O interventor e posteriormente governador, Ademar de Barros. Segundo antigos líderes da Umbanda Paulista, precursores de sua organização federativa, Ademar de Barros foi de fundamental importância para que os terreiros conseguissem se registrar em Cartórios de Títulos e Documentos, agindo junto às resistências da Igreja Católica.
No período de dez anos anteriores, à fundação da primeira federação de Umbanda, em 1953, a repressão continuou. Nessa fase, Pai Jaú, antigo líder umbandista da época, foi preso em 1948, tendo sido solto no mesmo ano, por ordem direta de Getúlio Vargas, que, já em fase de redemocratização, era também tido como protetor da Umbanda, não apenas no Rio de Janeiro, mas também em São Paulo. Em muitos terreiros antigos sua foto aparece ao lado da de Ademar de Barros. Isso revela o interesse, e, conseqüentemente, a interferência de líderes populistas em defesa da Umbanda, em troca de seu potencial eleitoral.
Na década de 50 os noticiários já revelavam que a Umbanda havia deixado de ser “caso de polícia”. É uma fase de grandes reportagens mostrando as sessões de culto e seus rituais. Mas ao mesmo tempo havia um retrocesso, com matérias que mostravam a Umbanda como perigosa e nociva do ponto de vista ético, religioso e político. Essas matérias vinham sempre acompanhadas de forte repreensão às autoridades da época que apoiavam a Umbanda, como Getúlio e Ademar de Barros.
Assim como hoje se vê uma grande movimentação dos cultos evangélicos, principalmente em programas de TV, tentando de todas as formas difamar a religião de Umbanda, em 1953 a Igreja Católica não mediu esforços para empreender uma violenta campanha da Arquidiocese de São Paulo contra a Umbanda. Esses ataques nada mais fizeram do que repetir as acusações da Imprensa conservadora. Falava-se em “demonolatria”, “despachos que pegam”, ou sobre o uso do sincretismo para enganar os “imprudentes”. Aos católicos que freqüentassem terreiros ou mesmo os centros kardecistas, era dada uma única e definitiva condenação: “Pecado mortal”.
Apesar de toda a perseguição, em 1953 surge a primeira federação registrada em cartório, a FUESP - Federação de Umbanda do Estado de São Paulo, dirigida por Alfredo Costa Moura. Assim, com o direito de se registrarem em cartório, como associações civis, os terreiros puderam sair da clandestinidade ou abandonar o artifício de se registrarem como “Centros Espíritas”. Nas décadas de 30 e 40, esses mesmos centros tinham, em sua maioria, características umbandistas. Esse aparente “mascaramento” das atividades umbandistas, primeiro através do catolicismo popular e depois como centros espíritas, que já eram reconhecidos pela sociedade, acabou por evidenciar os elementos que constituíram os próprios cultos. Ao registrarem-se, em cartório, conseguiram, finalmente, suas identidades como “Tendas de Umbanda”, respeitadas associações protegidas por lei e cortejadas por autoridades e políticos.
A partir de então há um crescimento significativo do registro das tendas de Umbanda em relação aos centros espíritas kardecistas. Se comparado às décadas anteriores, o crescimento chega a 1.200%. Nas décadas de 60 e 70 esse crescimento continuou, com uma forte queda no registro de centros espíritas. Na década de 70 o Candomblé repete, em relação à Umbanda, o mesmo que acontecera, com esta, em relação ao espiritismo, com a identificação assumida do Candomblé, antes disfarçado de Umbanda. Em decorrência desse crescimento explosivo da Umbanda e do Candomblé, multiplicam-se as federações, demonstrando a necessidade de um relacionamento com os poderes públicos.
Em 1961 realiza-se o 1º Congresso Umbandista do Estado de São Paulo. Ao término do congresso, surge o Superior Órgão de Umbanda do Estado de São Paulo - SOUESP, congregando várias das federações existentes (menos a FUESP que continuou independente), que apresenta-se até hoje como representante máximo e legítimo da Umbanda em São Paulo, sendo seu porta-voz junto a autoridades e governantes.
Como aconteceu essa extraordinária mudança que fez com que a Umbanda passasse de perseguida a parceira das principais autoridades e políticos do Estado de São Paulo?
Na década de 60 começa a se delinear esse “fenômeno”. A partir do golpe de 64, com a proibição dos sindicatos e partidos políticos, e também o início do afastamento da Igreja das grandes massas, governantes e políticos passam a procurar apoio popular nos grupos religiosos emergentes, entre os quais, os umbandistas. A própria Igreja Católica muda sua atitude aproximando-se dos umbandistas, que agora são considerados “irmãos separados”, que devem ser tratados com tolerância e respeito. Se lêssemos os jornais do início da década de 60, veríamos notícias sobre a realização do II Congresso de Umbanda (O Estado de São Paulo, 16/06/1961). Em outra notícia, com o título de “Saravá meu Pai Xangô, Saravá Mamãe Oxum” (Diário de São Paulo, 19/11/1961), descreve-se uma sessão assistida por repórteres, a convite do deputado gaúcho Moab Caldas. Em 1966, o mesmo jornal publica extenso artigo que discute o crescimento da Umbanda, em que já é chamada de “a religião brasileira”. Na edição de 31/10/1968, a revista Realidade exibiu reportagem mostrando os “umbandistas ilustres”. Pela primeira vez, na Imprensa, a Umbanda é colocada como força eleitoral, mencionando-se a grande votação obtida por Átila Nunes, no Rio de Janeiro, “político que não precisou fazer propaganda para se eleger, pois tinha amigos certos na Umbanda”.
A década de 70 é rica em envolvimentos políticos. Pela primeira vez se vê chefes de governos estaduais causando polêmica por causa do apoio público dado à Umbanda. A primeira notícia sobre tal envolvimento surge em 1973, com o jornal Estadão exibindo a seguinte manchete: “O governo vai à Festa de Oxóssi”, que fala sobre evento realizado no Departamento de Educação Física do Estado, em que estiveram presentes autoridades e políticos, entre os quais, o então vereador Samir Achoa, sempre lembrado como “um político que conta com o apoio dos umbandistas”. Foi o então governador, Laudo Natel, que oficializou a Festa de Ogum. Em conseqüência, o que se lê nos jornais é o seguinte: “Festa de Laudo preocupa a Igreja”, “Igreja condena as festas de Umbanda”, “A Umbanda faz sua festa com a ajuda do Estado” (referindo-se à Festa de Ogum realizada no Ginásio do Ibirapuera).
No segundo semestre de 1973 há dois outros envolvimentos políticos diretos, noticiados também com chamadas como: “Umbandistas no Palácio Anchieta”, sobre o II Encontro de Chefes de Terreiro, evento promovido pelo SOUESP, realizado na então sede da Câmara Municipal.
Em 1976, ano de eleições municipais, o jornal “O Estado de São Paulo” publicou um texto com o título “Saravá”. De caráter difamatório, falava contra o favorecimento oficial da Umbanda e culpava a Igreja Católica por seu retraimento na questão. Essa matéria publicada, contra a Umbanda, visava a Festa de lemanjá na Praia Grande. Num dos editoriais do jornal no mês de dezembro de 1976, é publicado o texto: “A estátua de lemanjá na Praia”, e diz num trecho: “A penetração da Umbanda é tão intensa que rende elevados dividendos políticos, como se viu em várias candidaturas às últimas eleições”. A inauguração da Estátua de lemanjá foi uma iniciativa da prefeitura de Praia Grande.
E não foi só o prefeito de Praia Grande que envolveu-se com a Umbanda nesse ano eleitoral. O prefeito Francisco Rossi, de Osasco, que em 1975 já havia oficializado a Festa de Ogum na cidade, instituiu, em 1976, o “Dia do Umbandista”, acompanhado de Waldomiro Pompeu, de Guarulhos e Amaury Fioravante, de Mauá.
Nem só políticos da Arena, partido da situação, procuraram o apoio da Umbanda. Vereadores, deputados estaduais e federais estiveram sempre presentes em festividades umbandistas. Samir Achoa e Orestes Quércia foram na época os mais envolvidos com a Umbanda.
Em 1978 é Paulo Maluf o candidato da Arena ao governo de São Paulo e não Laudo Natel. Isso alterou um pouco a situação, colocando, como fortes candidatos apoiados pela Umbanda, Ademar de Barros Filho e o Cel. Erasmo Dias, que, segundo o presidente do Superior Órgão de Umbanda e Candomblé do Estado de São Paulo - SOUESP, Ten. Hilton de Paiva Tupinambá, “quando foi secretário de segurança muito fez para acabar de vez com a repressão policial contra os terreiros de Umbanda”. No governo de Paulo Maluf intensificou-se a parceria governo e Umbanda. Foi nessa época que se conseguiu isenção de taxas de localização, funcionamento e instalação para Terreiros de Umbanda e Candomblé, como já acontecia com outros templos religiosos.
Em aproximadamente vinte anos a Umbanda passou de marginalizada e reprimida à parceira em apoios recíprocos. Se em outras épocas era perseguida pela polícia e pela Igreja, nessa fase, o secretário de segurança era tido como seu “protetor”. Em conseqüência disso, na década de 80, os líderes da Umbanda eram altamente considerados e homenageados por grandes autoridades do governo. Esse período de ascensão da Umbanda foi possível graças à continuidade, quase que automática, dos governos estaduais, reforçando a criação do “clientelismo político” e gerando a troca de favores por apoio eleitoral. A Umbanda foi muito utilizada pelo populismo da época, por ser considerada um grupo organizado e emergente.
Pela primeira vez, desde 1964, o governo estadual mais importante do país foi colocado em disputa eleitoral direta. Isso mudaria totalmente o panorama político do Estado de São Paulo, pois o partido de situação já não teria mais a garantia de permanência no poder. Nesse novo contexto, a Umbanda se encontra diante do difícil comprometimento com o partido de situação em troca dos favores recebidos. Ainda assim foi procurada pelos partidos oposicionistas. A Festa de Ogum, no lbirapuera, foi um exemplo disso: Silvia Maluf, representando seu marido Paulo Maluf, o senador Orestes Quércia e a deputada Ivete Vargas (filha de Getúlio Vargas), foram alguns dos inúmeros políticos que estiveram presentes ao evento.
Diante desse quadro, apesar de considerar a Umbanda “apartidária”, o SOUESP levanta a questão da necessidade de eleger um deputado estadual. É do então vice-presidente do SOUESP, Sr. Menezes, o seguinte discurso: “Primeira coisa, qualquer ato público, qualquer reunião nossa começa com o Hino Nacional, seguido do Hino da Umbanda e uma prece. Nossos altares são encimados por Jesus, Oxalá em nossa religião, enfim, um respeito tremendo às autoridades e às outras religiões, nunca combatemos ninguém. Precisamos começar a conscientizar nossas bases de que precisamos eleger um homem, é um princípio. Pela primeira vez teremos um candidato específico umbandista.”
Abrumólio Wainer – Pai Abrão, por sua experiência anterior como vereador em Santos, foi o escolhido. Os líderes das federações ligadas ao SOUESP não apoiaram totalmente sua candidatura; outros, temendo sua derrota, decidiram apoiar candidatos de outros partidos. O candidato do SOUESP não foi eleito, recebendo apenas 3.060 votos. Os demais candidatos, apoiados pelo SOUESP, também não se elegeram. Após a derrota do candidato umbandista e dos candidatos do PDS, partido de situação, várias lideranças federativas lamentaram a falta de expressão eleitoral da Umbanda.
O PMDB e Franco Montoro saíram vitoriosos no Estado de São Paulo, mas o partido também buscou o apoio da Umbanda, comparecendo às festas e visitando terreiros, ganhando discreto apoio dos umbandistas. Samir Achoa foi um dos candidatos que mais apoio obteve, apesar de estar afastado do envolvimento com as federações.
Hoje, após 29 anos das eleições que deram início às mudanças no quadro político do país, a Umbanda se vê ameaçada e agredida, publicamente, através de programas de televisão e de rádio, que ofendem e denigrem a imagem dos Chefes de Terreiro e da religião. Assim como também se vê as bancadas evangélicas, em âmbito municipal, estadual e federal, utilizarem-se do poder legislativo para lacrar terreiros e continuar com esses programas difamatórios.